Trabalho como repórter-fotográfico em São Paulo e passo o dia todo rodando pelas ruas dessa gigantesca cidade. O banco da frente do carro de reportagem é meu escritório. O barulho das buzinas dos motoboys, o cheiro de fumaça e os congestionamentos fazem parte da minha rotina.
Faz tempo que comecei a prestar atenção às pichações que dominam os muros da cidade. Conheci alguns pichadores e descobri que existe uma guerra silenciosa na noite paulistana. Milhares de jovens disputam os lugares mais altos para marcar seu nome ou o de seu grupo. Eles escrevem num alfabeto próprio, desenvolvido com linguagem e códigos específicos. Ganha a disputa quem pichar mais alto, no lugar com maior visibilidade.
A cada nova história que escutava eu me interessava mais pelo assunto. Passei a reparar nas letras, a tentar decifrar cada palavra e mensagem como se fosse um quebra-cabeça. Aos poucos, aquilo que parecia caótico começou a fazer sentido para mim. Percebi que aquilo não era tão feio como alardeavam. Na verdade, a suposta feiúra da pichação até combinava com a paisagem acinzentada de São Paulo. O estilo das letras, a forma, o jeito com que elas são escritas são lindos. Adoro ver no alto dos prédios aquelas pichações enormes, com letras enfumaçadas. Tento imaginar quem fez, como fez e o que passou pela cabeça dele enquanto fazia.
Pouca gente sabe, mas o estilo de letras criado pelos pichadores de São Paulo é cultuado na Europa. Existem livros na Alemanha que tratam exclusivamente da bela grafia das pichações paulistanas, com fotos e textos analíticos sobre o assunto. Creio que ao lado dos motoboys, os pichadores são o que há de mais representativo e genuinamente paulistano.
Além de bonito, o ato de pichar é um efeito colateral do sistema. É a devolução, com ódio, de tudo de ruim que foi imposto ao jovem da periferia. Muitos garotos tratados como marginais nas delegacias, mesmo quando são vítimas, ridicularizados em escolas públicas ruins e obrigados a viajar num sistema de transporte de péssima qualidade devolvem essa raiva na forma de assaltos, seqüestros e crimes. O pichador faz isso de uma maneira pacífica. É o jeito que ele encontrou de mostrar ao mundo que existe. Os jovens da periferia das grandes cidades precisam aprender a canalizar esse ódio para atividades não violentas, como o rap, o grafite e até mesmo as pichações – que também podem ser consideradas um esporte de ação, tamanha a descarga de adrenalina que libera em seus praticantes. Ser pichador requer ótimo preparo físico para escalar muros e prédios, andar por parapeitos com latas de spray e correndo o risco de ser pego pela polícia ou por algum morador furioso.
Não é só por isso que considero artísticas as pichações de São Paulo. A definição do que é arte tem algo de relativo e abstrato. O que é arte para uns, pode não ser para outros. Tudo depende das informações que cada um tem, onde e como vive, como cresceu e que tipo de formação educacional teve. É verdade que a ação dos pichadores desagrada e é condenada pela maioria das pessoas que vivem em São Paulo. Mas grandes artistas do último século usaram a arte para reverter conceitos estabelecidos e provocar mudanças de comportamento. Para isso, precisaram incomodar o establishment. Toda arte que se preze tem de incomodar, causar no espectador algum tipo de reação à qual ele não está acostumado. A pichação é um bom exemplo de como cumprir bem este papel.
Não defendo que cada leitor compre uma lata de spray e saia pichando seu nome por aí. Apenas tento entender, livre de preconceitos, um fenômeno que é visível nos pontos mais movimentados da cidade e que faz parte da vida de todos que andam por São Paulo. A pichação é o plano de fundo da cidade, um detalhe do cenário que combina com a cor do asfalto, o cinza dos prédios, o cheiro da fumaça que sai do escapamento dos ônibus, o barulho do motor, da buzina dos motoboys, da correria...